Casadinhos de Fresco
Com base numa das crônicas da famosa série "A Caminho do Fundão" que meu professor Godofredo de Oliveira Neto costumava postar em seu mural no Facebook, que transcrevo abaixo, elaborei uma análise e teci comentários sobre ela.
Adoro ler suas crônicas pois elas sempre me inspiravam a escrever outro texto, tendo por mote alguns elementos presentes nelas. Sempre foi para mim uma tarefa prazerosa comentar e desenvolver resenhas críticas sobre elas, visto que ele, como escritor tarimbado que é, conseguia condensar em poucos parágrafos toda sua erudição e conhecimento profundo de grandes figuras literárias. E ele é dono de um humor irônico, fino e inteligente, que capta bem todas as nuances da situação que descreve.

Post publicado em 12/03/2018
O colega fazia conferência no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no centro do Rio, no belo prédio construído nas primeiras décadas do século XIX, onde funcionou a Academia Real Militar. O IFCS vai tremer, me confidenciou ele, que chegou ao local junto comigo. Ele faria a conferência ao lado de um professor da Universidade de Berlim, um dos maiores militantes da causa gay na Europa, o colega precisou. Gênero, identidades e política o tema.O professor brasileiro abriu a conferência. Leu umas frase que me soaram conhecidas.
- " A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes casadinhos de fresco". Me lembrei das frases no conto Pílades e Orestes, do Machado . Nunca pensara em Quintanilha e Gonçalves ( os personagens do conto) desse prisma. Mas me assustei. Alguém da plateia interrompeu brutalmente a exposição gritando " você não vai nos dizer que Machado de Assis escreveu texto com esse viés de gênero!"
Outros levantaram a voz criticando o exaltadinho, pedindo silêncio. A coisa logo degringolou. Choveram acusações, houve quem cuspisse em vizinhos de cadeira na plateia. E é aí que eu entro. O que que o professor da Letras acha? Gelei. Tinha tido um pesadelo horrível à noite e ainda estava sonolento. Meu professor de Latim do Colégio Santo Antônio de Blumenau, Frei Odorico Durieux, me passava um sabão: quer dizer que o meu aluno preferido, que consegue passar para o Português trechos inteiros da Eneida e verter para o Latim trechos mal traduzidos para o português, o maior latinista discente que tive até hoje, gosta, como me disseram, de ouvir a música A majestade o sabiá, cantada pelo Jair Rodrigues, um lixo, e elogia Oxóssi da floresta em pura blasfêmia?
- E o Maomé, então também não é Deus,respondi.
Como reação, meus dois ouvidos doeram com as palmadas tipo telefone desferidas pelo amado professor. A pergunta da plateia do IFICS doeu igual.
Respondi academicamente: As pulsões do personagem, fonte até de desejo, tornam o pecado uma realidade, mas o leitor não é o pecador - se existisse pecado aí.
O texto alforria o leitor libidinoso e voyeur . Fez-se silêncio na plateia. Também achei confusa a minha resposta, mas me abriu espaço para sair e pegar o ônibus em direção ao Fundão. Esqueci de precisar que madame K. estava comigo no evento- você lacrou, ela disse baixinho. Até hoje não entendi bem o sentido de lacrou. Fui, através das janelas embaçadas do busão, apreciando a paisagem carioca saudoso do frei Odorico. Os ouvidos doíam.

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